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O adeus ao Bar do Napô
Um dos bares mais tradicionais do Gama fecha as portas depois de 39 anos
Por Juan Ricthelly
Bares abrem e fecham todos os dias, alguns não duram nem o tempo de tomar um litrão, e quando você olha, já se foram. Outros, se convertem em verdadeiros templos da boemia, se agregando à cultura e à história de lugares e pessoas.
Em Ilhéus na Bahia, o Vesúvio tem uma estátua de Jorge Amado escrevendo um de seus maiores clássicos, Gabriela, Cravo e Canela. Em Havana, capital de Cuba, os bares La Floridita e La Bodeguita, são mundialmente conhecidos, graças à menção honrosa de Ernest Hemingway sobre seus daiquiris e mojitos. No Rio de Janeiro, o antigo Bar Veloso, e hoje Garota de Ipanema, foi palco de muitos encontros entre os deuses da Bossa Nova e da Música Popular Brasileira, onde muitas canções e poemas nasceram entre uma cerveja e outra.
O Gama não poderia ser diferente, com seus bares, botecos, boêmios, músicos, poetas e cachaceiros inveterados. Estou por aqui há trinta anos, bebendo há uma década e meia, legalmente desde os 18, e já passei por muitos bares e botecos desde então, Clube da Sinuca, Toca da Cevada, Bar do Bigode, Resenhas, Cantoria Blues e o Escambau, Bar do Magrão, Bar do Japão, JC, Santo Bar, Bar dos Cornos, Whiskitório, agora o Bar do Napô… e tantos outros que não me recordo o nome.
E diante dessa curta experiência que possuo, posso dizer tranquilamente que cada bar é único! É como se tivessem uma personalidade própria, que ganha vida por meio do dono atrás do balcão, dos garçons caminhando de um lado pro outro, das músicas e músicos que tocam, das frituras e comidas de boteco expostas na estufa, que estão lá sabe-se lá desde quando, dos tira gostos, daquela garrafa de cerveja trincando e branca como “canela de pedreiro”, dos murmúrios e buchichos das conversas pelas mesas, das histórias que foram encenadas em algum momento, e principalmente pelas pessoas que escolhem esses cenários para serem palcos de alguns atos em suas vidas.
Nos bares e botecos há liberdade como em poucos lugares, o repertório é imenso! Você pode chorar por qualquer motivo, gargalhar até chorar, cantar desafinadamente aos berros, lamentar um chifre, desabafar com amigos e ouvir seus desabafos, arquitetar uma traição, contar e ouvir segredos, fofocar sobre a vida alheia, prestar atenção na conversa da outra mesa, trocar olhares indiscretos, falar palavrões, conversar sobre sexo, política, futebol e religião, lembrar do passado e sentir a nostalgia doer no peito, contar mentiras, misturar bebidas destiladas com fermentadas, usar roupa velha e havaianas, conhecer o amor da sua vida ou o daquela noite… Tudo isso e muito mais, entre gole ou outro de cerveja, ou várias doses de pinga!
Um bar que ficou aberto durante 39 anos, seguramente é um desses lugares! O Bar do Napô fechou suas portas no dia 8 de Outubro de 2021, coincidindo com o nascimento do Gama, 61 anos antes. Deixando um rastro de histórias, sentimentos e ressacas na vida da nossa amada cidade.
O Bar do Napô esteve em atividade desde 1983, no Setor Leste do Gama, no complexo de pequenos comércios ao redor do saudoso Cine Itapuã, o segundo cinema mais antigo do Distrito Federal. De frente para o que um dia foi a badalada Praça do Samdubas, da Amarelinha e do Coreto da Quadra 22, demolido por um tal Ricardão, sob o argumento higienista de impedir o agrupamento de pessoas em situação de rua e maconheiros.
Napoleão Passos de Medeiros (74 anos), natural da cidade de Caxias no Maranhão, carinhosamente conhecido como Napô, é o protagonista de um dos bares mais duradouros e tradicionais do Gama, tendo o respeito e admiração da comunidade, pelos serviços que prestou ao longo de 39 anos ininterruptos, sem tirar férias, criando três filhos, convertendo o seu estabelecimento num dos pioneiros da Pinga com Mel, que é uma marca registrada de seu bar, que proporcionou o nascimento de amizades, amores e casais, sem abrir mão da originalidade de outros tempos.
Seu Napô foi definido por alguns como uma lenda viva, que foi motoqueiro e teve participação importante na manutenção do Cine Itapuã como um espaço público, que um dia poderá voltar a servir nossa comunidade. Fez parte do grupo de 9 comerciantes daquele local, que juntos compraram o Cine Itapuã e o doaram ao poder público, para que ele não fosse adquirido pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), impedindo assim, que um templo histórico da cultura do Distrito Federal se convertesse num templo religioso. Só posso dizer, que me emocionei ao saber disso!
Ao conversar com algumas pessoas que estavam por lá, tentei captar um pouco da essência daquele lugar, que nunca havia frequentado, e não pude deixar de me lamentar por isso.
Waldir, um morador e líder comunitário do Gama que sempre aparece para registrar eventos e acontecimentos, numa demonstração de preocupação belíssima em preservar a memória histórica da cidade, me disse emocionado, enquanto saboreava um copo de pinga com mel “Frequento esse bar desde 1984 e ontem tive uma vontade imensa de chorar”, com olhar o distante como se estivesse assistindo a um filme em uma tela invisível, compartilhou algumas histórias e impressões que viveu naquele lugar.
Havia uma sensação de melancolia, gratidão e alegria no ar e no olhar das pessoas que estavam lá se despedindo naquela tarde. Oswaldo lembrou dos eventos gastronômicos, que aconteciam uma vez por mês, com um grupo de amigos frequentadores do bar, se reunindo para cozinhar bode, buchada e até mesmo carnes exóticas como jacaré. “Eu nasci no Gama, mas passei alguns anos fora, e quando voltei em 2008, comecei a frequentar aqui, reencontrei e fiz muitos amigos, vai deixar saudade!”
Enquanto Seu Napô saia para resolver algumas coisas, sua filha Ana Poliana, atendia a todos com simpatia e um sorriso no rosto:
“O que você está rabiscando aí nesse caderno?” me perguntou.
“Bem! Estou tomando algumas notas, pois quero escrever algo sobre esse lugar? Você se importaria em compartilhar um relato comigo?”
“Claro que não!”
Me contou que cresceu naquele bar, brincando entre as mesas e os clientes, tendo muitas recordações de infância, como a Festa do Cine Itapuã. Ao ser perguntada sobre o sucesso e o carinho do bar de seu pai, respondeu que: “É um bar simples! Mas o meu pai sempre presou por atender as pessoas bem, fazer quitutes deliciosos e manter impecável a higiene dos banheiros e do espaço como um todo”.
Me aproximei de uma mesa com várias pessoas sentadas, bebendo e conversando de forma descontraída, contando histórias e relembrando momentos.
“Eu comecei a frequentar aqui através de um primo, tinha Pinga com Mel, e era caminho para o Festival de Música Popular do Gama (FMPG), acho que era 86/87, quando o Carlinhos Piauí venceu!” contou Lúcio.
Lindovaldo contou que conheceu a esposa no Bar do Napô em 1983, com quem está casado até hoje e com dois filhos já adultos, que também costumam frequentar o lugar, recordou ainda, de um evento onde um Legião Urbana não tão famoso como hoje, fez um show na Praça do Coreto, com direito à vaquinha da multidão para comprar discos e ajudar a banda que se consagraria como uma das maiores e mais importantes do rock nacional.
“Eu tomei a minha primeira pinga aqui!” compartilhou Gleydson, que seguiu um relato que quase me derrubou da cadeira sobre o saudoso Cine Itapuã. “Tinha exibição de pornô nas terças e de vez quando rolava até uns streapteases!”, está aí algo que não sabia! Lembrou ainda que o bar abria das 8h às 23h, e que não raras vezes, a juventude boêmia da cidade, emendava a noite esperando o bar abrir.
“A pinga era muito barata!” disseram várias pessoas, que apontavam esse como um dos muitos motivos do sucesso do Bar do Napô, visto que pessoas jovens e com um poder aquisitivo não tão elevado, conseguiam frequentar o bar, e beberem de forma acessível e a preços populares.
Pedi a minha garrafa de Pinga com Mel, para levar para casa, e poder degustar em outro momento um pouco do sabor daquele lugar e do que representou ao longo desses 39 anos.
Antes de me despedir do Bar do Napô, olhei um instante para a esquina do Complexo Cine Itapuã, e observei o Sarará, um dos points da juventude da nossa cidade no momento, onde até a calçada é disputa nos dias e noites de grande movimento, do outro lado da pista, o Divina Grill, um bar restaurante que está em alta como um dos mais badalados da cidade, e não pude deixar de me perguntar:
“Será que estarão abertos daqui 39 anos? Quantas histórias aconteceram e irão acontecer nesses lugares? Caso venham a fechar algum dia, haverá uma comoção como essa?”
Só o tempo dirá! O Bar do Napô se foi! Seu Napô está entre nós e irá usufruir de um descanso merecido depois de tantos anos de trabalho! As histórias, momentos, sentimentos e tudo o que aconteceu nesse lugar tão repleto de carinho e afeto, seguirão vivas na memória e nos corações de nossa comunidade, se convertendo num belo capítulo da nossa história coletiva como cidade.
Muito obrigado Seu Napô!
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