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Humilhação, Desrespeito e Morte

Sistema carcerário de Brasília, instituição falida e despreparada que ignora todos os direitos humanos e constitucionais dos internos.

CPP DF

Por: Paulo Tavares

Um suplício de total desrespeito a todos os direitos humanos, civis e morais, em uma instituição completamente falida, com funcionários absolutamente despreparados, dotados de todos os tipos de instrumentos de torturas opressivas, físicas e psicológicas, em um cenário monstruoso de corredores, grades e salas de suplícios inimagináveis; um descaso total e absoluto pela vida. Onde não só o preso, mas, seus familiares visitantes, sofrem todo tipo de maus tratos e constrangimentos possíveis e impossíveis.

Foi esse o quadro encontrado por um jornalista, que por motivos fúteis, sorte ou até quem sabe destino, se viu convivendo com todas as mazelas presentes no CDP (Centro de Detenção Provisória) no complexo penitenciário da Papuda, no Distrito Federal. Durante os sete dias ali vividos como interno, onde foi testemunha ocular de todo tipo de atrocidades que se passaram, do mais simples tapa no rosto até a morte de um detento por pura omissão de socorro por parte dos funcionários responsáveis por zelarem a segurança dos presos.

O que você irá ler a partir de agora é um relato assustador que mais parece uma história vista somente em filmes de centros concentrações, porém não se engane, pois não se trata de um uma história de terror criada por um romancista, mas sim da realidade nua e crua do cotidiano de centenas de centenas de homens armazenados como animais em espaços minúsculos, sujeitos a todos os tipos de doenças, violência e maus tratos que se possa imaginar.

Antes de começar essa narrativa dos fatos, gostaria de pedir desculpas primeiro aos internos daquele lugar pela hipocrisia de todos os que não conhecem verdadeiramente o caráter, senso de união, humildade, companheirismo e a solidariedade que existe por parte dos presos, com respeito à pessoas como eu, que por um ou outro motivo acabamos por estarmos ali. Obrigado pelo apoio, pelo socorro, pelas palavras de conforto, pelo auxilio e principalmente pelas lições que levarei comigo eternamente, lições que me mostraram que o amor e o respeito pelo próximo são sem dúvidas as coisas mais importantes que nunca devemos perder, independente do que fizemos, somos ou onde estamos. Do fundo do meu coração, obrigado!

Em segundo lugar gostaria de dizer às famílias dos detentos que os visitam naquele lugar, dizer que me envergonho, não por ser Brasileiro, mas por fazer parte de uma sociedade extremamente hipócrita, incapaz de reconhecer o seu valor, pelos maus tratos, pela humilhação e por todas as outras situações a que são submetidas por esse sistema imundo.

E, por último, à sociedade pelos relatos aterrorizantes que aqui narrarei.

Quero lembrar a parte hipócrita da sociedade, aos colegas sensacionalistas e aos doutores da lei que não estou aqui defendendo a prática de crimes e nem dizendo que esses crimes cometidos pelos internos não devam ser punidos, ao contrário disso, defendo que todo o código penal brasileiro precisa urgentemente grandes reformas, e além de uma diminuição na maioridade penal, devemos ter penas mais severas para os infratores. Creio sim que o lugar de criminosos é realmente na cadeia, seja lá qual for o seu crime e seja lá qual for a sua posição social, que seja julgado e condenado com todo o rigor da lei. Quero simplesmente mostrar a verdade sobre o que acontece fora dos olhos da sociedade, dentro de um estado soberano inascível, e a realidade da vida de homens segregados, torturados, humilhados, envergonhados, maltratados e uma lista interminável de outras rotinas que definem o dia a dia daqueles que ali estão. E que você seja o juiz de sua própria consciência e tire suas conclusões. mais ainda, que faça sua parte para mudar esta e outras condições humanas presentes em nosso tão amado, mas corrupto, país.

No Domingo, dia 10 de Maio de 2015, me envolvi em um acidente de transito, e como havia ingerido uma pequena quantidade de bebida alcoólica em um churrasco na casa de amigos (a ingestão desta bebida não foi a responsável pela colisão, entretanto acusou 0.77 de nível alcoólico no teste de bafómetro) fui submetido ao teste de bafómetro e em seguida recebi voz de prisão na 20ª Delegacia de polícia na cidade do Gama-DF, onde passei a noite em uma minúscula cela com mais cinco pessoas. Na segunda-feira, nas primeiras horas da manhã, fomos surpreendidos na abertura da porta da referida por uma equipe de policiais, arrogantes, responsáveis pela nossa transferência, para o DPE (Departamento de Polícia Especializada) onde, para minha surpresa, foi que começou de verdade os maus tratos que imaginava ter cessado ao sair do fétido cubículo onde havia sido encarcerado. Ali chegando fomos colocados com uma grande quantidade de outras pessoas em um lugar chamado de “Triagem”, que nada mais era do que uma grande sala, cercada por paredes em três lados e uma grade na frente onde havia um corredor ao qual os próprios agentes chamavam de “Curral” (local de armazenamento de gado) o que fazia muito sentido pois o mal cheiro que exalava de uma privada de meia parede (Boi) lembrava realmente o lugar. Não havia bancos e nenhum tipo de conforto, pois todos éramos obrigados a permanecermos sentados no chão, e sem calçados, o contato com o chão gelado subia por todo o corpo nos fazendo tremer de frio. A impressão era de dor até mesmo nos ossos e um a um começamos a ser chamados para sermos admitidos no sistema, (fotografados, impressão digital e todos os tramites necessários) o que era, apesar da opressão dos gritos (“Anda logo ladrão”, “abaixa a cabeça”, “põe a mão pra traz”, “rápido estrume”), um momento de descanso para o corpo, nádegas e coluna vertebral doloridas e enfraquecidas pela longa espera e o frio, então voltávamos ao local e posição anterior. Todo esse processo durou até o início da noite, quando fomos divididos em grupos menores e  novamente transferidos para a carceragem, um local muito parecido com o anterior só que sem energia elétrica (sem lâmpada) totalmente escuro e bem menor, onde nos amontoamos pelo chão durante toda a noite e pouco a pouco, um a um éramos vencidos pelo cansaço e acabávamos deitando no chão e adormecendo sem se importar mais com a friagem, pernilongos e a superlotação (que nessa hora era até positiva, pois a respiração e o calor dos corpos colados uns nos outros acabavam por aquecer um pouco.) e, sem que ninguém pudesse ao menos imaginar, o dia raiou, para o que seria um dos mais fatídicos da minha vida, e novamente sob gritos, ofensas e tapas, fomos embarcados como bois em carros que nos levariam ao nosso pior pesadelo (Bonde), em direção ao CDP ( Centro de detenção provisória).

CDP – Procurei em meu vocabulário e fora dele tentando encontrar uma palavra que pudesse definir aquele lugar mas infelizmente não encontrei nada, vou usar então a que mais se aproxima embora ainda muito distante da realidade, uma “Atrocidade” moral, física e mental. Essa é talvez a mais próxima que consigo usar para definir os momentos ali vividos.

Terça-feira, dia 12 de Maio de 2015, em torno das 8h, após um longo caminho de sacolejes intermináveis, dentro de um apertado espaço no veículo de transporte, desembarcamos cerca de 150 homens, no CDP, e em fila indiana, de cabeça baixa, mão esquerda no ombro do homem a frente e mão direita para trás, sob fortes gritos e ameaças com aparelhos de choque que emitiam um som horripilante, que faziam nossos corpos tremerem de medo, fomos levados a um grande pátio onde recebemos além de novos gritos e xingamentos, uma palestra nada convencional sobre as regras e os castigos aos quais estávamos sujeitos a partir daquele momento, já que agora segundo o preletor, não éramos mais seres humanos, cidadãos e nem tão pouco pessoas, mas sim suas propriedades. Enquanto éramos aterrorizados pelas palavras e gritos dos famigerados agentes prisionais, um a um éramos separados em um outro “curral” onde tivemos as cabeças raspadas de uma forma grosseira e dolorosa por uma outra equipe munida de maquinas, velhas, e contaminadas pelo uso continuo, sem nenhum tipo higienização. Em seguida fomos imunizados com três vacinas e depois novamente fomos separados em dois grupos um deles para homens até 35 anos de idade, que foram levados a um lugar chamado “triagem” que segundo relatos e ilustrações posteriores percebi que se pareciam muito com o curral do DPE. O restante dos homens do segundo grupo no qual eu estava foram separados em pequenos grupos e levados até a carceragem e distribuídos em celas construídas para abrigar 6 presos mas que comigo éramos 18 homens amontoados de forma desumana, e sem o mínimo conforto ou higiene. Entretanto pra minha surpresa esse foi o momento de total e completo alivio, pois apesar de ali estarem pessoas presas por vários tipos de crimes, do mais simples até o mais grave (de uma simples “direção perigosa”, roubo, Maria da Penha a um triplo homicídio com duas tentativas) que fui recebido como igual, sujeito as regras do “Barraco” (apelido dado pelos presos a cela) como todos eles, mas com direito a voto nas decisões que sempre são tomadas democraticamente pelo voto da maioria. No momento da minha prisão eu estava de short e camiseta coloridas, o que não é permitido dentro das dependências do complexo (fui obrigado a tirar toda a roupa e recebi dos agentes um short velho, rasgado e quase se desmanchando pelo uso e pelo tempo) e chegando ao “Barraco” os próprios presos reuniram e conseguiram entre eles calças, camisetas, chinelos, meias, moletom e toalha, além disso dividiram comigo alimento. E entre conversas, histórias, cultos Evangélicos, e choros de arrependimento, os dias foram sendo vencidos e chegou a quinta-feira, dia 14 de Maio.

Morte – Logo que amanheceu foi ouvido em uma outra ala próxima o som de várias batidas nas grades das celas, que foram sendo aderidas cela a cela. Junto com as batidas ouvi o entoar da frase “Preso passando mal” repetida incansavelmente pelo corredor. Por vezes silenciava-se, mas de tempos em tempos recomeçavam, o que mostrava que apesar de todo o barulho feito com o intuito de chamar a atenção para uma situação de emergência, não surtia efeito, pois ninguém aparecia. E assim, sob batidas e “Preso passando mal”, o dia foi passando até chegar a noite onde mais celas aderiram ao pedido de socorro, o que mostrava claramente que a situação daquele interno havia piorado, mas que apesar de tudo, de todo o barulho, ninguém apareceu, e o tempo foi passando, em torno de 23h, alguns agentes apareceram na porta da cela onde eu estava e chamaram pelo meu nome, informando então que eu iria embora, que pegasse os “meus pertences”. Após um momento de despedida dos companheiros, fui conduzido até um lugar horrível chamado de “corro”. Era um lugar fétido, um odor de urina e de fezes sufocante, o chão era como se nunca tivesse sido lavado, e as paredes completamente tomadas por escritas feitas com objetos metálicos e canetas onde podíamos ler todos os tipos de apologias, desabafos e ameaças ao sistema. Após receber e assinar na mão de um oficial de justiça o meu “Alvará de Soltura” fui informado que apesar de estar livre, permaneceria encarcerado naquela pocilga até que amanhecesse. Novamente o sofrimento começava pois ali estavam 27 homens em um lugar onde ao meu ver não podia abrigar mais que 10; não existia ali nenhum tipo de conforto. As pessoas esqueciam completamente da sujeira e, colocando sua saúde em risco, eram vencidas pelo cansaço acabavam por desabar sobre aquele chão contaminado, gelado e sujo.

Por volta de 2 horas da manhã (todos os horários aqui citados são presumidos, já que não tínhamos acesso a relógios e tão pouco ao tempo lá fora), começaram novamente as batidas na ala onde o preso estava passando mal, só que desta vez as batidas eram furiosas e os gritos eram muito intensos e aumentavam a medida que as outras celas, alas e corredores aderiam aquele protesto. E em pouco tempo se tornou ensurdecedor, chegando ao ponto de sentirmos o chão e as paredes tremerem como se estivéssemos experimentando um abalo sísmico. Não consigo nem descrever com palavras o barulho que estourava naquele lugar, mas de uma coisa tínhamos certeza algo muito grave tinha acontecido. Foi quando passaram correndo em frente as grades do “corro” vários agentes prisionais e de outras forças policiais, munidos de armas de grosso calibre, cassetetes, máquinas de choque e uma infinidade de aparatos em direção à aquela carceragem e pouco a pouco o barulho foi cessando. Após alguns minutos surgiram da porta que dava acesso a carceragem dois presos carregando um terceiro sem vida em uma rede improvisada com uma coberta. E sob as ordens dos famigerados agentes colocaram em um vão ao lado do local onde estávamos (sujeitos agora sabe se lá qual tipo de infecção) e qual foi minha surpresa ao perceber que aquela cena não abalara emocionalmente a nenhum dos referidos agentes, que sorriam, e faziam piadas, mostrando que aquilo era uma coisa comum, tanto quanto descascar uma bala, o desdém pela situação e pela vida daquele homem era evidente. Após alguns minutos ali, se dirigiram novamente ao seu descanso como se nada tivesse acontecido. De repete o dia raiou e nada mais soubemos a respeito do fato. Para mim ficaram as imagens de completo terror e de total falta de respeito pela vida, a omissão de socorro certamente ficará oculta entre as paredes da intolerância.

Fui colocado então em liberdade, mas continuo preso, preso pela lembrança, preso pela impotência, pela angustia e pela tristeza. Aqui posso simplesmente pedir as pessoas de caráter, que não compactuem com essa farsa, não devemos esquecer que não se paga a maldade com a maldade, somos todos seres humanos, somos cidadãos e acima de tudo irmão.

 

 

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